Como já explanado, a falta de amadurecimento científico sobre a questão da anulabilidade ou ineficácia perdurou até o início do século XX, José Carlos Barbosa Moreira, em seus estudos, apontava como incertas as ideias de Clóvis Bevilaqua sobre o assunto, reproduzindo o seguinte:
São atos nulos (de pleno direito) os que, inquinados por algum vício essencial, não podem ter eficácia jurídica”; e “ato anuláveis (dependentes de rescisão) denominam-se os que se acham inquinados de um vício capaz de lhes determinar a ineficácia, mas que poderá ser eliminado, restabelecendo-se, assim a normalidade do ato [...].
Apesar do avanço da ciência jurídica neste assunto, até hoje os operadores cometem impropriedades em obras de aceitação geral.
O atual Código Civil, Capítulo V, Título I, Livro III, em seus arts. 166 a 184, se debruça sobre a invalidade dos negócios jurídicos, trazendo maior acerto em sua denominação. Em seu art. 166, relaciona as nulidades do ato jurídico. No artigo 171 define as hipóteses de anulabilidade, frisando que, não obstante a modernização de seus conceitos, o fato é que referido códex, comete alguns deslizes, como por exemplo, em seus arts. 1910 e 1912, onde se lê ineficácia, deveria constar em primeira invalidade.
Interessante posição é a de Emílio Betti:
A invalidade é aquela fata de idoneidade para produzir, por forma duradoura e irremovível, os efeitos essenciais do tipo (§30), que provém da lógica correlação estabelecida entre requisitos e efeitos, no mecanismo da norma jurídica (Cap. Intr., §1º), e é, ao mesmo tempo, sanção do ônus imposto à autonomia privada de escolher meios idôneos para atingir os seus escopos de regulamentação dos interesses (§8º). Qualifica-se, pelo contrário, como simplesmente ineficaz, o negócio em que estejam em ordem os elementos essenciais e os pressupostos de validade, quando, no entanto, obste à sua eficácia uma circunstância de fatos a eles extrínseca. Invalidade e ineficácia, assim caracterizadas, representam, portanto, a solução que o direito é chamado a dar a 2 problemas de tratamento essencialmente diferentes. A invalidade é o tratamento que corresponde a uma carência intrínseca do negócio, no seu conteúdo perceptivo; a ineficácia, pelo contrário, apresenta-se como resposta mais adequada a um impedimento do caráter extrínseco, que incida sobre o projetado regulamento de interesses, na sua realização prática. Ora, sob um ponto de vista meramente lógico, por parecer que a carência intrínseca do negócio postula, necessariamente, carência total de efeitos, isto é, nulidade, e que, quando esta não se verifique, como sucede na anulabilidade, não se pode falar de invalidade, sendo apenas de admitir “possibilidade de eliminação” dos feitos “isto é, uma ineficácia meramente eventual ou potencial do negócio” [...]” (Tese sustentada por Fedele, Invalidità d. negozio giur., 270 e segs).
Adentrando especificamente no assunto, frisando que neste estudo foi objeto de capítulo próprio (2.1), sintetizaremos para melhor compreensão os 3 planos do mundo jurídico, como forma de estabelecer o critério da ineficácia da alienação imobiliária. A existência como plano do mundo jurídico, dita a materialidade do negócio jurídico. No plano da validade, presenciamos os pressupostos para que possam produzir efeitos. Quanto à capacidade da produção ou não dos efeitos se insere o plano da eficácia.
Tendo em mente os planos do mundo jurídico, presentes as anormalidades que configuram a fraude contra credores ou como alguns doutrinadores costumam conceitua-la, fraude pauliana, sobre o negócio jurídico, ficamos a frente de um ato ineficaz.
Tal ineficácia do negócio jurídico se insere no campo relativo, ou melhor, ineficácia relativa do negócio jurídico, pois, apesar de ser válido e apto a produzir efeitos, nem sempre tais efeitos são gerados, maculando efeitos secundários do negócio jurídico, não o efeito principal.
Tendo em mente os planos do mundo jurídico, presentes as anormalidades que configuram a fraude contra credores ou como alguns doutrinadores costumam conceitua-la, fraude pauliana, sobre o negócio jurídico, ficamos a frente de um ato ineficaz.
Interessante posicionamento é o de Alexandre Freitas Câmara sobre a ineficácia relativa, onde em seu raciocínio, ensina que o reconhecimento da ineficácia relativa, resguarda direito de terceiros, alheios ao negócio jurídico entabulado:
[...] Há casos, porém, em que – como forma de se proteger a esfera patrimonial de terceiros – exclui-se a aptidão do ato jurídico para produzir o efeito secundário (embora o ato continue apto a produzir seu efeito programado). Assim, por exemplo, na alienação de bem em fraude contra credores, o efeito programado se produz, e o bem alienado passa a pertencer ao adquirente. Não se produz, porém, o efeito secundário, o que significa dizer que aquele bem, embora tenha saído do patrimônio do devedor permanece incluído no campo de incidência da responsabilidade patrimonial, isto é, embora não mais pertença ao devedor, será possível sua apreensão (no patrimônio de terceiro que o adquiriu), para que com ele se assegure a realização do direito de crédito do terceiro prejudicado pela alienação [...].
Porém, a corrente doutrinária contrária, em especial, adotada por Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, se posicionam pelo classicismo da anulabilidade, defendendo seus pontos de vista, considerando o seguinte:
[...] 2. Regime Jurídico da fraude contra credores. É dado pela lei. A norma sob comentário dá o regime da ‘anulabilidade’ ao negócio jurídico celebrado em fraude contra credores. As considerações feitas por parte da doutrina, de que o negócio jurídico seria válido, mas ineficaz (teoria da inoponibilidade) – copiando o direito italiano, sem reservas –, devem ser consideradas de lege ferenda. Vide o exemplo da simulação, que no regime anterior era causa de ‘anulabilidade’ (CC/1916 102 e 147 II) e no regime novo é causa de ‘nulidade’ do negócio jurídico (CC 167). Portanto, é a ‘lei’ que dá o regime jurídico dos defeitos dos negócios jurídicos. Anulado o negócio jurídico por fraude contra credores, o bem alienado volta ao patrimônio do devedor, para a garantia do direito dos credores (CC 165). Caso se desse à fraude contra credores o tratamento da ineficácia, reconhecida essa o bem alienado continuaria no patrimônio do adquirente, fazendo com que apenas aquele que entrou com a ação pauliana tivesse o beneficio do reconhecimento da ineficácia, mantendo-se íntegro o ato fraudulento em face dos demais credores [...].
A posição acima, consubstanciada no art. 165 do Código Civil de 2002, se orientou pela interpretação gramatical, incorrendo nas impropriedades contidas no Código Civil de 1916, quando o melhor, segundo a exposição de motivos apresentada pelo Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, de 16 de janeiro de 1975, Miguel Reale, seria uma interpretação visando buscar a finalidade da norma, que se afigura como jurídica, em face das consequências advindas do reconhecimento a fraude contra credores, a declaração da ineficácia relativa do negócio jurídico.
Ainda que rejeite os demais doutrinadores, o reconhecimento à ineficácia relativa do negócio jurídico, ou melhor, da alienação imobiliária, o fato é que na doutrina clássica, a anulabilidade não se mantém, civilistas como Alexandre Freitas Câmara, concluiu sobre o assunto, da seguinte forma:
[...] no caso de anulação de um ato praticado em fraude contra credores, deveria o bem alienado fraudulentamente retornar ao patrimônio do devedor que o alienara. Tal, porém, não ocorre. Basta ver a afirmação de um notável civilista pátrio, defensor da posição tradicional (Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, vol. II, p. 451), segundo a qual o ato praticado em fraude contra credores seria anulável, mas que, ao analisar os efeitos da sentença proferida na “ação pauliana” (ou seja, na demanda destinada a atacar o ato praticado em fraude contra credores), afirma que “a revogação a que conduz a ação pauliana, como se vê, é puramente relativa, no sentido de que não se verifica senão em proveito dos credores do devedor e nunca em proveito do próprio devedor. Entre este e os terceiros que decaíram na ação pauliana o contrato permanece válido, subsistindo inteiramente. Exemplo: no caso de uma doação fraudulenta, quando os credores fizeram anular essa doação e foram pagos com o produto dos bens que voltaram ao patrimônio do devedor (o doador), como consequência da anulação pleiteada, se o preço apurado é superior ao valor total dos créditos, o excedente será restituído ao donatário. Parece estranho que um ato anulado permaneça válido entre as pessoas que o praticaram, como afirma textualmente o trecho citado acima. Da mesma forma, é no mínimo estranho que, uma vez expropriado o bem que havia sido alienado em fraude contra credores (depois de ter sido anulada a alienação), e havendo saldo em razão de ter sido obtida quantia em dinheiro superior ao valor do crédito exequendo, pertencer tal saldo ao adquirente, se o bem não mais integrava o seu patrimônio (e sim o do alienante) quando foi expropriado. Tais dificuldades para explicar as consequências da fraude pauliana desaparecem, porém, se abandonarmos a posição clássica e afirmarmos que o ato praticado em fraude contra credores é válido, mas ineficaz. [...]”.
Há jurisprudência, em algumas Cortes Estaduais, em especial Tribunal de Justiça do Paraná, que ainda se posicionam pela anulabilidade da alienação imobiliária fraudulenta, na medida em que, percorrida todas as etapas para configuração da fraude pauliana, com a finalidade de frustrar credores, reconhecem que a ação pauliana é a única forma para se anular a alienação de imóvel, nos termos do art. 159 do Código Civil, adotando posição equivocada do Código Civil de 1916.
A adoção da doutrina clássica acerca da anulabilidade, só se justificaria, se houvesse previsão legal no sentido de, em havendo a fraude, se obrigasse ao comprador a devolução do imóvel alienado, para que o mesmo pudesse integrar a garantia patrimonial dos credores, nos termos do princípio da responsabilidade patrimonial do devedor. Haveria, também, a necessidade de previsão legal, para obrigar quem recebeu o imóvel, a devolver o preço dele, situando as partes envolvidas em um tipo de situação que ensejasse a anulação da alienação do imóvel, hipótese que o art. 159 do Código Civil não contempla.
Ademais, adotar aludido posicionamento em um provimento jurisdicional, não traduz o sentido de justiça, pois, do exemplo adotado, a justiça da decisão determinará a restituição ao alienante, podendo causar prejuízo ao terceiro adquirente, que nada tem a ver com a alienação fraudulenta, assim, tal posição jurisprudencial, incentiva à prática de fraude.
Em verdade, no Direito Brasileiro, o que se vê é que alguns juristas, bem como alguns membros do judiciário, apegam-se a teoria clássica das nulidades do Direito Romano, baseada em pressupostos falsos, decorridos da péssima leitura dos textos existentes e do sistema legal romano. Ademais, apesar do texto legal estar em desconformidade com a melhor orientação para a ineficácia do negócio jurídico, tal entendimento não pode ser considerado regra absoluta, até porque, o que é absoluto em direito, comporta certa relatividade.
Essa aversão à questão da teoria da ineficácia relativa dos atos vem sendo manifestada pelos juristas, como Yussef Sai Cahali, Cândido Rangel Dinamarco há mais de 15 anos, fazendo com que o próprio Superior Tribunal de Justiça reconhecesse como legítima sua aplicabilidade, até porque sua inteligência insere-se no próprio texto constitucional, considerando os princípios da boa-fé necessários a desestimular atos fraudulentos em face de credores, da função social da propriedade, já que a propriedade serve como garantia patrimonial do devedor-alienante, impedindo, através do reconhecimento a ineficácia relativa, causar prejuízos ao terceiro adquirente.
O Superior Tribunal de Justiça, ao modificar seu posicionamento acerca da teoria da nulidade para ineficácia relativa, visou orientar o judiciário como um todo, a não cometer injustiças e a não produzir efeitos não desejados pelo legislador, considerando a exposição de motivos do atual Código Civil.
Por estas considerações, a alienação imobiliária em fraude contra credores, não se coaduna com a teoria da anulabilidade, na medida em que se realiza a justiça frente às práticas fraudulentas, cada vez mais aperfeiçoadas, razão pela qual, a aplicabilidade do reconhecimento da ineficácia relativa sobre a alienação, operacionaliza, de forma eficaz, a desconstituição da alienação imobiliária fraudulenta, nos termos dos princípios constitucionais, como o da boa-fé (implícito na CF/88), o da função social da propriedade (art. 5º, XXIII e art. 170, III, ambos da CF/88).